O fim - O conto que deu origem à música


O Fim

A lua branqueou o vale em plena noite, quando Robert tomou a estrada. Os capulhos estouravam rendidos à força do algodão e, dali a alguns dias, o campo estaria pronto para a colheita. O homem desviava os olhos da estrada para a imensidão das plantas à sua esquerda. Em um instante condensou em sua mente toda a fadiga e o padecimento que a safra traria para os miseráveis que se consumiam nos campos. Pensou mesmo que se o rio vivificava aquelas terras, da própria plantação afluía um outro rio, este de águas negras, que reuniam e arrastavam toda a pobreza do delta em sentido contrário, fazendo brotar aquela dança e aquelas canções que mais se assemelhavam a uma lamúria, numa existência, sobre todas as coisas, incompleta.


Reconheceu que os tempos haviam mudado e voltar para a sua terra não lhe parecera tão fácil. Levava, ainda vivas em sua lembrança, as chamas que vira ao entardecer e as conduzia em seu íntimo como um agouro que lhe espicaçava o ventre e se espalhava pelo corpo. Pensou na mulher. Onde estaria Mary Jane agora? As memórias dos dias de ternura vividos no barraco que juntos construíram, e que hoje encontrara vazio, insistiam em visita-lo, mas Robert as repelia. Sabia que as recordações da liberdade dos sorrisos que experimentavam quando estendiam os cobertores no quintal, ou quando cuidavam juntos do jardim que elegeram como símbolo de renovação do amor, enfraqueceriam sua determinação de resolver, de uma vez por todas, aquelas questões que há tantos anos os torturavam na busca de reencontrar o veio da comunhão perdida, do sentimento que se esvanecera.

Voltou o rosto para o céu estrelado e perguntou-se sobre as horas. Apressou o passo. Em sua solidão o som arrastado de seus sapatos, sobre o cascalho, voltava-lhe aos ouvidos como a resposta de suas divagações. Distraído, acercou-se da encruzilhada, percebeu o pequeno bosque à margem do caminho e desviou, apressado, os olhos. Lembrou-se da noite quando, ainda menino, voltava da igreja com os pais e vira os frutos podres pendendo dos galhos. O velho Charles mesmo tentara tapar-lhe os olhos, mas bastou um segundo para que aquelas imagens nefandas penetrassem fundo em sua alma, para nunca mais saírem. Caminhou com a vista oblíqua: Robert jamais olhava para as árvores à noite. Desviou à direita; tentava recordar o caminho que percorrera seis anos antes, quando tirara a mulher da casa de sua mãe. Pensou novamente na igreja. Na manhã seguinte iria à congregação, resistiria aos olhares reprobatórios de todos e trataria de reconciliar-se com Deus. Haveria de existir um meio de congraçar toda aquela sua paixão e os desígnios do Senhor, aprovassem ou não os irmãos. Sim, ele encontraria a sua maneira de redimir-se.



Percebeu ao longe a luz amarelada das primeiras casas; sentiu nova pontada no ventre, quase corria pela estrada deserta. Reconheceu, mais à frente, o precário arranjo de tábuas e estacas que serviam de ponte para que se cruzasse o pântano: estava no caminho certo. Equilibrou-se no pranchão temendo as aberturas, ganhou a margem oposta. Encontrou em um descampado o bangalô de madeira branca. Uma lâmpada iluminava a varanda, mas não era possível identificar claridade por entre as cortinas de renda e Robert não pôde saber se havia alguém acordado na casa. Aproximou-se pisando leve para não denunciar-se prematuramente, subiu a pequena escada, parou frente à porta, pigarreou, deu com os nós dos dedos na treliça, aguardou. Não demorou e foi atendido pela velha que mantinha as mãos escondidas por trás do corpo gordo.


- Boa noite, Senhora Dodd´s, eh... Desculpe-me por importuná-la tão tarde da noite, mas não encontrei Mary Jane em casa e gostaria de saber se ela está aqui...



A mulher cuidou não ser nem um pouco simpática e permaneceu com as mãos ocultas. Robert não sabia se ela tinha uma faca, uma espingarda ou simplesmente tentava intimidá-lo com um blefe. Sem proferir uma palavra, sem desviar os olhos do homem, a velha recuou lentamente e voltou a cerrar a porta que, poucos segundos depois, foi aberta por Mary Jane. Robert sentiu o sangue gelar quando viu a mulher; achou que ela estava realmente linda. Reconheceu o cheiro de suas roupas e sentiu o coração disparar.

- Olá, Robert.
- Olá, Mary Jane – Respondeu, gaguejante, o homem – Fiquei um tanto surpreso por não encontrar-te em casa, esta tarde.
A mulher suspirou ainda antes de falar:
- O que tu querias, Robert? Querias que eu permanecesse sozinha naquela casa sem saber ao certo que dia decidirias voltar do norte? És metade de todas as coisas que há ali e, sem ti, naquele lugar, nada parece fazer sentido.



Robert percebia a amargura no rosto da mulher, não obstante, suas palavras brandas tornassem tudo mais difícil.

- Olha, tenho muitas coisas a dizer-te – Falou, hesitante, o homem - Eu não encontrei, é verdade, as coisas que fui buscar longe daqui, mas ganhei bem mais do que poderia imaginar e, distante de casa, eu aprendi uma maneira diferente de cantar, que me fez lembrar de como eu era, antes de ti.
- Por Deus, não diga isto, Robert...



Olhavam-se nos olhos e o homem sentia a alma a dissolver-se quando percebeu que Mary começara a chorar. Fez menção de falar quando, pela primeira vez na noite, o vento se moveu e Mary Jane sentiu o cheiro da fumaça no paletó de Robert. Como que uma revelação se lhe ocorreu e ela, em um instante, entendeu todas as coisas.

- É o fim, Mary Jane.
- Por Deus, Robert...
- Acredite-me, é o fim. Estava em chamas o nosso jardim quando deixei a casa ao anoitecer. Não foi ninguém que me contou. Fui eu mesmo que o vi com meus próprios olhos...

Robert percebeu que a mulher se curvara em um espasmo de dor e também se rendeu ao choro.

- Eu soube disto cada vez que te vi sorrir à mesa daquela pequena casa, Robert; soube ainda quando te vi partir ao entardecer, acenando feliz com a tua maleta, e continuarei a sabê-lo até o último dia da minha vida. Para mim, as coisas não hão de mudar.
- Por que dizes isto, Mary Jane? – Perguntou o homem com a voz embargada pelo pranto.
- Porque daqui a cem anos, depois de consumida a nossa carne, passados cem anos, ainda seremos os mesmos, Robert... 

O homem não teve coragem de beijar a esposa. Tolhido de dor, tocou-lhe desastradamente o braço, como a um instrumento que não soubesse mais como usar, antes de virar-se e partir. Mary Jane cumprirá sua predição e seguirá chorando pela sucessão das estações dos anos, em meio à faina diária. Depois da colheita do algodão, quando caírem as primeiras chuvas, talvez rebente um broto no jardim calcinado da casa de Greenwood.


Fábio Leal - fabio_dl@hotmail.com